"Hoje eu não quero conversas vestidas de uniforme. Diálogos
impecavelmente arrumados que não deixam o coração à mostra.
As palavras podem sair de casa sem maquiagem. Podem surgir com
os cabelos desalinhados, livres de roupas que as apertem, como se
tivesse acabado de acordar. Dispensa-se tons acadêmicos, defesas
de tese, regras para impressionar o interlocutor. O único requinte deve ser o
sentimento. É desnecessário tentar entender qualquer coisa. Tentar
solucionar qualquer problema. Buscar salvamento para o quer que seja.
(...)
Hoje me fala de você. Dos momentos em que a vida lhe doeu tanto
que você achou que não iria aguentar. Fala das músicas que compõem
a sua trilha sonora. Dos poemas que você poderia ter escrito, de tanto que
traduzem a sua alma. Senta perto de mim e mesmo que estejamos rodeados
por buzinas, gente apressada, perigos iminentes, faz de conta que a gente
está conversando no quintal de casa, descascando uma laranja, os pés descalços,
sem nenhum compromisso chato a nossa espera. A gente já brincou tanto de
faz-de-conta quando era criança, onde foi que a gente se esqueceu como se
chega a esse lugar de inocência? Fala da lua que você admirou outra noite
dessas, no céu. Da borboleta que lhe chamou à atenção por tanta beleza,
abraçada a alguma flor, como se existisse apenas aquele abraço. Diz se
quando você acorda ainda ouve passarinhos, mesmo que não possa identificar
de onde vem o canto. Diz se a sua mãe cantava para fazer você dormir.
(...)
Senta perto e me conta o que você sentiu quando viu o mar pela primeira vez
e o que sente quando olha para ele, tantas vezes depois. Se tinha jardim na casa
da sua infância, me diz que flores riam por lá. Conta há quanto tempo não vê uma
joaninha. Se tinha algum apelido na escola. Se consegue se imaginar bem velhinho.
Fala da sua família, a de origem ou a que formou. Das pessoas que não têm o seu
sobrenome, mas são familiares pra sua alma. Fala de quem passou pela sua vida
e nem sabe o quanto foi importante. Daqueles que sabem e você nem consegue
dizer o tamanho que têm de verdade. Fala daquele animal de estimação que deitava
junto a seus pés, solidário, quando você estava triste. Diz o que vai ser bacana
encontrar quando, bem lá na frente, olhar para o caminho que fez no mundo, em
retrospectiva.
(...)
Não precisa ter pauta, seguir roteiro, deixa a conversa acontecer de improviso, uma
lembrança puxando a outra pela mão, mas conta de você e deixa eu contar de mim.
Dessas coisas. De outras parecidas. Ouve também com os olhos. Escuta o que eu digo
quando nem digo nada: a boca é o que menos fala no corpo. Não antecipe as minhas palavras.
Não se impaciente com o meu tempo de dizer. Não me pergunte coisas que vão fazer
a minha razão se arrumar toda para responder. Uma conversa sem vaidade, ninguém
quer saber qual história é a mais feliz ou a mais desditosa."
(...)
Hoje eu quero conversar com um amigo pra falar também das coisas bacanas da vida.
As miudezas dela. A grandeza dela. A roda-gigante que ela é, mesmo quando a gente
vive como se estivesse convencido de que ela é trem-fantasma o tempo inteiro. Um
amigo pra falar de coisas sensíveis. Do quanto o ser humano pode ser bondoso, honesto,
afetuoso, divertido e outras belezas. Dos lugares onde os nossos olhos já pousaram e
daqueles onde pousam agora. Um amigo para conversar horas adentro, com leveza, de
coisas muito simples, como a gente já fez mais amiúde e parece ter desaprendido como
faz. Um amigo para se conversar com o coração.
(...)
E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, nos dizer um pouco
um para o outro, senta ao meu lado assim mesmo. Deixa os nossos olhos se encontrarem
vez ou outra até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a vida da gente se sente
olhada com amor. Senta apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o seu.
Às vezes, a gente nem precisa mesmo de palavras."
(Ana Jácomo)