domingo, 14 de dezembro de 2014

Armadilha






"Vamos combinar que muitas vezes não há mistério algum, vilão algum, nenhuma influência sobrenatural, questão de sorte. A gente sabe que se tocar naquele fio desencapado é choque garantido, como da última vez, mas a gente toca. A gente sabe que certos adubos são infalíveis para fazer a nossa dor crescer, mas a gente aduba. A gente sabe os tons emocionais que desarmonizam a pintura da tela de cada dia, mas a gente escolhe exatamente esses para pintar, mesmo dispondo de outros tantos na nossa caixa de lápis de cor. A gente sabe a medida do tempero e a desmedida, como sabe o sabor resultante de cada uma. Por histórico, a gente sabe a resposta muito antes de refazer a pergunta, mas a gente refaz.

Vamos combinar que muitas vezes não há nada de tão imprevisível, de tão inimaginável, muito menos entrelinhas, muito menos mau-olhado. A gente sabe, por memória das andanças, para onde a estrada de certos gestos nos leva, mas a gente segue. A gente sabe no que dá mexer em casa de marimbondo, mas a gente mexe. A gente sabe que não vai receber o que espera, mas a gente oferta sempre pela penúltima vez. A gente sabe que algumas praias são traiçoeiras, que não sabemos sequer nadar direito, que o afogamento é a coisa mais provável de todas, mas a gente mergulha. A gente sabe que a realidade, por mais dura que seja, precisa ser encarada com os olhos mais abertos do mundo, mas a gente inventa todo jeito que pode para desviar o olhar.

Vamos combinar que muitas vezes não há segredo algum, inimigo algum, interrogação alguma, nenhuma entidade obsessora além da nossa autosabotagem. A gente sabe que esticar a corda costuma encolher o coração, mas a gente estica. A gente sabe que nos trechos de inverno é necessário se agasalhar, mas a gente se expõe à friagem. A gente sabe que não pode mudar ninguém, que só podemos promover mudanças na nossa própria vida, mas a gente age como se esquecesse completamente dessa percepção tão sincera. A gente lembra os lugares de dor mais aguda onde já esteve e como foi difícil sair deles, mas, diante de circunstâncias de cheiro familiar, a gente teima em não aceitar o óbvio, em não se render ao fluxo, em não respeitar o próprio cansaço."



(Ana Jácomo) 

domingo, 14 de outubro de 2012

A vida é tão maravilhosa...


"Diariamente eu chego a simples conclusão de que a vida é tão
maravilhosa porque também é feita de colos, de feridas que 
cicatrizam, de amigos que celebram ou choram junto, de café
coado com coador de pano, de gente que pega ônibus ou faz
caminhada pela manhã, de quem planta o que se pode comer,
de vizinhos que alimentam seus gatos com comida de gente.
Que a vida é feita de algumas pessoas que direcionam todo
o seu potencial criativo para melhorar a qualidade de vida
de gente que elas nem conhecem. Que é feita de e-mails que
chegam recheados de saudades e de cartas extraviadas
solitárias numa gaveta de um correio qualquer. De muros 
e pontes e cais. De aviões que suprem distâncias e de barcos
que chegam. De bicicletas que atravessam cidades. De redes
que balançam gente. De rostos que recebem beijos.  De
bocas que beijam. De mãos que se dão. Que existem
pessoas altamente gostáveis, altamente rabugentas,
altamente generosas, pessoas distraídas que perdem
as coisas, mal-educadas que buzinam sem necessidade,
pessoas conectadas que se preocupam com o lixo, pessoas 
apaixonadas e apaixonantes, pessoas possíveis e impossíveis,
pessoas que se entregam, pessoas que se privam, pessoas
que machucam, pessoas que chegam pra curar, 
desencadeadores de poemas, de sorrisos, de lições de vida 
que ficarão guardadas para sempre... A vida é tão maravilhosa
 porque ela nos  compensa com ela mesma"

(Marla de Queiroz)




quinta-feira, 19 de julho de 2012

A flor da pele


"Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia.
Esse jeito de ouvir além dos olhos, de ver além dos ouvidos, de 
sentir a textura do sentimento alheio tão clara no próprio coração e
tantas vezes até doer ou sorrir junto com toda a sinceridade. Essa
sensação, de vez em quando, de ser estrangeiro e não saber falar
o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de 
uma civilização extinta. Essa intensidade toda em tempo de 
ternura minguada. Esse amor tão vívido em terra em que a 
maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a
indelicadeza. Esse cuidado espontâneo com os outros. Essa
vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Esse melindre
 de ferir por saber, com nitidez, como dói se sentir ferido.

Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia.
Essa saudade, que às vezes faz a alma marejar, de um lugar que
não se sabe onde é, mas que existe, é claro que existe. Essa
possibilidade de se experimentar a dor, quando a dor chega, 
com a mesma verdade com que se experimenta a alegria. Essa
incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que
também mora na sutileza. Essa vontade de espalhar buquês de
sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de
vez em quando, não deixam adormecer a ideia de um mundo
que  possa acordar sorrindo. Pra toda gente. Pra todo ser.
Pra toda vida. Eu já tentei ser diferente, por medo de doer, 
mas não tem jeito: só consigo ser igual a mim."

(Ana Jácomo)

domingo, 1 de julho de 2012

Com o coração


"Hoje eu não quero conversas vestidas de uniforme. Diálogos
impecavelmente arrumados que não deixam o coração à mostra.
As palavras podem sair de casa sem maquiagem. Podem surgir com
os cabelos desalinhados, livres de roupas que as apertem, como se
tivesse acabado de acordar. Dispensa-se tons acadêmicos, defesas
de tese, regras para impressionar o interlocutor. O único requinte deve ser o
 sentimento. É desnecessário tentar entender qualquer coisa. Tentar  
solucionar qualquer problema. Buscar salvamento para o quer que seja.
(...)
Hoje me fala de você. Dos momentos em que a vida lhe doeu tanto
que você achou que não iria aguentar. Fala das músicas que compõem 
a sua trilha sonora. Dos poemas que você poderia ter escrito, de tanto que 
traduzem a sua alma. Senta perto de mim e mesmo que estejamos rodeados
por buzinas, gente apressada, perigos iminentes, faz de conta que a gente
está conversando no quintal de casa, descascando uma laranja, os pés descalços,
sem nenhum compromisso chato a nossa espera. A gente já brincou tanto de 
faz-de-conta quando era criança, onde foi que a gente se esqueceu como se
chega a esse lugar de inocência? Fala da lua que você admirou outra noite
dessas, no céu. Da borboleta que lhe chamou à atenção por tanta beleza,
abraçada a alguma flor, como se existisse apenas aquele abraço. Diz se
quando você acorda ainda ouve passarinhos, mesmo que não possa identificar
 de onde vem o canto. Diz se a sua mãe cantava para fazer você dormir.
(...)
Senta perto e me conta o que você sentiu quando viu o mar pela primeira vez
e o que sente quando olha para ele, tantas vezes depois. Se tinha jardim na casa
da sua infância, me diz que flores riam por lá. Conta há quanto tempo não vê uma 
joaninha. Se tinha algum apelido na escola. Se consegue se imaginar bem velhinho.
Fala da sua família, a de origem ou a que formou. Das pessoas que não têm o seu
sobrenome, mas são familiares pra sua alma. Fala de quem passou pela sua vida
e nem sabe o quanto foi importante. Daqueles que sabem e você nem consegue 
dizer o tamanho que têm de verdade. Fala daquele animal de estimação que deitava
junto a seus pés, solidário, quando você estava triste. Diz o que vai ser bacana 
encontrar quando, bem lá na frente, olhar para o caminho que fez no mundo, em
retrospectiva.
(...)
Não precisa ter pauta, seguir roteiro, deixa a conversa acontecer de improviso, uma
lembrança puxando a outra pela mão, mas conta de você e deixa eu contar de mim.
Dessas coisas. De outras parecidas. Ouve também com os olhos. Escuta o que eu digo
quando nem digo nada: a boca é o que menos fala no corpo. Não antecipe as minhas palavras.
Não se impaciente com o meu tempo de dizer. Não me pergunte coisas que vão fazer
a minha razão se arrumar toda para responder. Uma conversa sem vaidade, ninguém
quer saber qual história é a  mais feliz ou a mais desditosa."
(...)
Hoje eu quero conversar com um amigo pra falar também das coisas bacanas da vida.
As miudezas dela. A grandeza dela. A roda-gigante que ela é, mesmo quando a gente
vive como se estivesse convencido de que ela é trem-fantasma o tempo inteiro. Um 
amigo pra falar de coisas sensíveis. Do quanto o ser humano pode ser bondoso, honesto, 
afetuoso, divertido e outras belezas. Dos lugares onde os nossos olhos já pousaram e
daqueles onde pousam agora. Um amigo para conversar horas adentro, com leveza, de
coisas muito simples, como a gente já fez mais amiúde e parece ter desaprendido como
faz. Um amigo para se conversar com o coração.
(...)
E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, nos dizer um pouco
um para o outro, senta ao meu lado assim mesmo. Deixa os nossos olhos se encontrarem
vez ou outra até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a vida da gente se sente
olhada com amor. Senta apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o seu.
Às vezes, a gente nem precisa mesmo de palavras." 

(Ana Jácomo)




sábado, 30 de junho de 2012

Depois de tantas buscas...



"Depois de tantas buscas, encontros, desencontros acho que a minha mais
sincera intenção é me sentir confortável, o máximo que eu puder, estando
na minha própria pele. É me sentir confortável, mesmo convivendo com
muitas perguntas que o tempo não respondeu e com ausência de qualquer
garantia de que ele ainda responda. É me sentir confortável, mesmo 
entendendo que as respostas que tenho mudarão, como tantas já 
mudaram , e que também mudarei,  como eu tanto já mudei.

A jornada é feita de dádivas e alegrias, mas também de imprevistos,
embaraços, inabilidades, lições de toda espécie. De vez em quando 
tropeçamos nos trechos mais acidentados. Depois, levantamos e
prosseguimos: o chamado do amor é irrecusável para a alma.
Desistir dele, para ela, é como desistir de respirar."

(Ana Jácomo)


sábado, 16 de junho de 2012

Que assim seja...


"Desejo que haja cumplicidade. Que o entendimento aconteça no olhar.
Que as palavras sejam estilingues e não pedras. Desejo que haja
tolerância e muita paciência. Que os defeitos de um, não machuquem
o outro. Que as qualidades de um, não ofusquem o outro.
Desejo que o tempo seja generoso. Que os dias passem em paz.
Que as noites sejam de festa. Desejo que a rotina não seja cruel.
Que a paixão seja sempre descoberta. Que o abraço seja 
sempre conforto. Desejo que as vontades caminhem sempre
de mãos dadas. Que as diferenças e distâncias só sirvam para
aproximar. E que a fé no amor, seja a salvação para todos os dias."

(Briza Mulatinho)

sábado, 9 de junho de 2012

A minha essência...


"Se alguém me perguntar quando comecei a sentir a minha 
vida mais interessante, eu tenho a resposta na ponta da língua:
quando comecei a me interessar mais por mim. A ser mais
gentil comigo. A dar menos espaço ao que não tem importância
e a respeitar o tamanho do que, de fato, me importa. A querer
me conhecer melhor. A ter menos pressa pra chegar sei lá onde.
A apurar o ouvido pra sentir a música das coisas mais simples,
que cantam bonito e muitas vezes baixinho. Quando comecei
a me enjoar da mania de tentar entender tanto e abri o
coração para apreciar mais. Quando comecei a buscar
conforto em estar na minha companhia."

(Ana Jácomo)